Ulysses

Apesar de compreender e aceitar o ciclo da vida, não deixo de lamentar a perda. Guaribão, como o chamava carinhosa e respeitosamente, encerra sua trajetória deixando um legado público e pessoal considerável. Num momento profissional decisivo da minha vida ele me ensinou um tanto de coisas—ironicamente nenhuma delas dentro de uma sala de aula, apesar de professor doutor.

Trabalhamos lado a lado em campanhas eleitorais, programas de rádio, brainstorms de cursos superiores, estratégias de comunicação, textos e mais textos. Divergíamos toda hora. "Quer mierrrrda é essa"???, questionava com um sotaque inconfundível. Ficávamos putos um com o outro para, depois, exercitarmos o difícil porém nobre gesto de ceder e respeitar. Opiniões imutáveis geram verdades equivocadas, eu viria a perceber.

Quanto mais convivíamos mais discordávamos e nos respeitávamos. Aprendi que as ideias não morrem quando mudam. A força de uma ideia está justamente na sua capacidade de transformação. Conviver com aquele cara ajudou a transformar um juntador de letrinhas em um redator de verdade, com senso crítico, clareza de ideias, argumentos.

Uma vez tivemos uma discussão mais acalorada e séria que as outras. Estávamos no meio de uma campanha política que não ia bem. Guaribão saiu do estúdio de rádio absolutamente emputecido, batendo porta e tudo—coisa rara de acontecer. Claro que não lembro a razão exata do desentendimento da vez. Só sei que deve ter sido importante para ambos chegarem a esse ponto de desarmonia momentânea.

Algumas horas depois ele volta. Agitado, mas calmo. Retoma o assunto. O papo flui, as risadas ressurgem aos poucos, as ideias se encaixam. Um tapinha no ombro, um abraço forte, uns xingamentos de carinho. Às vezes deixar pra lá não é perder. É se libertar. E perdoar não tem nada de divino. Simplesmente não queremos perder um sentimento que está em jogo. Não é interesse. Perdoar é recuperar uma relação importante antes mesmo que ela se perca de vez.

Foi nessa convivência com Guaribão que percebi o quanto a habilidade política e as relações humanas regulam o nível de dificuldade das nossas vidas. Quanto mais contatos você tem, menores as chances de fracassar em determinado projeto. Amizade vale mais que dinheiro. E isso passa diretamente pelo exercício da política. Presenciei Guariba resolvendo problemas complexos com um simples telefonema para a pessoa certa, na hora certa, com o approach certo.

Depois da discussão tensa no estúdio de rádio ele me convidou para jantar. Fomos a uma pizzaria que ficava numa chácara perto da cidade. Guaribão propõe "um vinho para celebrar as discussões acaloradas da vida". Amigo do dono, ele escolhe pessoalmente na adega a garrafa que seria servida junto com o prato e também o vinho que seria consumido como aperitivo-digestivo. Não conhecia esse lado "enólogo" de Guaribão. As escolhas harmonizaram perfeitamente. O ritual me encantou e a partir daquele dia o vinho passaria a ser minha bebida predileta.

“I like on the table,
when we’re speaking,
the light of a bottle
of intelligent wine.”
Pablo Neruda

Depois disso as nossas taças de vinho foram brindando cada vez menos por força das circunstâncias. À distância nos acompanhávamos. Ele feliz com o rumo que minha vida profissional havia seguido—apesar de longe dos textos, mais perto dos meus sonhos como fotógrafo. Eu feliz com cada conquista que tinha sua participação.

Enquanto a notícia de sua morte me entristece profundamente a oportunidade de ter convivido e aprendido com ele me faz grato. Espero que nosso tempo juntos tenha sido tão bom para ele como foi para mim. Um brinde ao meu amigo professor doutor Ulysses Telles Guariba Neto, o Guaribão. Com vinho, óbvio.

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