Sobre viver

Esse porrete aí é pra você dar umas pancadas nos outros, é?

Trata-se de um cano de ferro de 1,5m. Ele apresenta restos de cimento e uma leve corrosão. Provavelmente sobra de alguma demolição.

Não, que isso. É pra defesa mesmo.

O objeto está meticulosamente encaixado na lateral do carrinho de madeira, bem próximo de onde seu dono se posiciona para puxar o veículo de tração humana. Ainda é cedo e por isso poucos papelões ocupam a carroceria do carrinho.

O rapaz que havia feito a pergunta, vestido por obrigação com roupas sociais de tecidos baratos e pouco harmoniosos, não parece convencido.

Sabe. Às vezes vêm uns malucos querendo roubar meu carrinho. Uns dois ou três. Aí eu pego o Santinho e me defendo. A coisa não tá fácil pra ninguém, meu amigo.

Na lanchonete da esquina o homem ainda terminando de mastigar seu pão com manteiga confere a comanda de seu pedido. Do outro lado do balcão o funcionário devolve o troco. As mãos ainda molhadas pela louça recém-lavada deixa as notas úmidas, mas seu novo dono não parece se incomodar.

— Ô Zé, não estou reclamando, até porque já paguei. Mas o que são esses dois reais que você cobrou aqui? Não vai me dizer que é o chá, porque essa caixa aí eu que trouxe na sexta.

Um homem que sorvia seu café puro ouve o diálogo e se interessa com o olhar.

Zé retorna à tarefa infinita de lavar os copos amontoados na pequena pia anexa ao balcão. Ele tenta conter sem sucesso um meio sorriso maroto no canto da boca.

— Eu trouxe o chá porque o de vocês tinha acabado, então deixei logo uma caixinha aí, reforça o cliente. Então não vem me dizer que é o chá, Zé.

— Não, não é o chá. É a água, responde Zé, agora deixando o sorriso se transformar num riso malandro que enche o bar todo. Você trouxe o chá, mas pra fazer o seu chá eu uso água. E nem tô cobrando o açúcar. Nem a lavagem do copo. A coisa não tá fácil pra ninguém, amigo.

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