O voo da galinha

Escrever bem e não saber sobre o que escrever está entre os maiores castigos que um escritor pode ter. É como se ele passasse a ter a imagem e a semelhança de uma galinha — tem asas, é uma ave, mas não voa.

Diariamente ele enfrenta o olhar invisível da máquina de escrever e seu papel em branco, caído para trás como um topete soberbo. Ele tateia, sente o formato curvo das teclas, percebe o cheiro da fita responsável por reproduzir as ideias que não vêm. Posiciona os dedos confiante, mas o que vem é só mais um suspiro profundo.

Acende um cigarro. Não traga, pois não fuma. Cheira o aroma do whisky. Não toma, pois não bebe. Tudo numa tentativa de criar uma atmosfera favorável à escrita. Uma versão cenográfica de segunda categoria de Hemingway, quase uma evocação espiritual. Mas ele não crê, pois ateu.

Ri de si mesmo. Abandona a cadeira, deita-se no sofá marrom surrado que fica bem diante da escrivaninha iluminada por um abajur verde. Mesmo de olhos fechados vê a imagem da mesa e da máquina de escrever com seu topete branco a desafiá-lo. Entreabertos, seus olhos notam a lixeira vazia, denunciando que nem sequer errar ele conseguiu. “Ausência de erro não significa, necessariamente, acerto”, mentaliza uma desapiedada filosofia.

Ele folheia o surrado caderninho de anotações, um guardião de ideias surgidas em momentos inesperados. Repassa uma a uma, todas devidamente usadas, reusadas, adaptadas, usurpadas. Inspirações espremidas em todo o seu sumo, exiladas à inutilidade.

Naquela época de ideias fáceis as palavras fluiam quase sem pensar, suas mãos voavam sobre as teclas, “uma diarréia pelos dedos”, brincava um amigo de mau gosto. Tudo começava com um fragmento de pensamento garranchado em seu caderninho. Diante da velha Remington, as palavras se conectavam como uma criança liga pontos para formar uma imagem pré-desenhada. A história já estava lá, ele só precisava ligar as frases. A folha em branco não tinha nada de intimidadora, pelo contrário, parecia uma fotografia prestes a ser revelada por uma emulsão química chamada escrita.

Naquela época ele não tinha a menor ideia de que se tornaria um escritor. Escrevia porque sentia vontade. Era um falar consigo mesmo, mas diferente de falar sozinho. Uma voz dentro da cabeça criava diálogos de papel dirigidos a outras pessoas que sequer haviam lido aquilo. Um troço de doido.

Hoje, sente um peso surgido silenciosamente como uma ruga no rosto. Se antes escrevia por desejo, hoje precisa escrever porque é escritor e escritores escrevem querendo ou não. Escritores de verdade escrevem coisas boas. Criam histórias inspiradoras. Contam casos passados. Fazem sorrir, fazem chorar. Refletem junto com o leitor. Inventam mundos inexistentes. Criticam. Idolatram. Têm, diante de si, o privilégio da liberdade de poder tudo. “Veja eu, preso na obrigação de ser livre”.

Os livros que o tanto projetaram bem diante dele poderiam ser um lembrete de seu sucesso, mas o avesso do momento produzia em seu autor uma sensação de fracasso conhecida dos impostores. “Dane-se. Não vou escrever mais nada. Nem acho meus livros tão bons como dizem. Pra falar a verdade, não suporto olhar para eles, imagine relê-los. Talvez eu tenha sido apenas um bom falsificador de talento”.

Sentando-se num giro e dois tapinhas nas pernas depois, levanta-se aparentemente aliviado. Conformara-se em ter asas e ainda assim não voar. De forma automática, com a prática adquirida por anos a fio, acomoda-se na velha cadeira, realinha a folha de papel na máquina de escrever e começa a teclar vigorosamente.

— Escrever bem e não saber sobre o que escrever está entre os maiores castigos que um escritor pode ter. É como se ele passasse a ter a imagem e a semelhança de uma galinha — tem asas, é uma ave, mas não voa.

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A imagem que fica não é a que se vê